A sobrevivência do tempo
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Faltou tragédia grega a esta Antígona
LUIS MELO e, ao fundo, Larissa Bracher: o ator, no papel de Creonte, está mais sacrificado pela concepção de direção de Guilherme Leme; a atriz tem uma figura digna e de bastante força
Barbara Heliodora
Ao realizar sua "RockAntygona" a partir não só de Sófocles como também de Brecht e, ao mesmo tempo, reduzir o elenco a três personagens, Guilherme Leme criou para si um problema de difícil solução: por um lado altera o texto, conduzindo-o para um debate sobre a guerra enfrentada por Tebas e o tema da obediência em termos militares, e por outro só deixa em cena os personagens especialmente construtivos do tema ligado ao conflito de obediência às leis dos deuses e às leis dos homens. O tom da encenação no Mezanino do Espaço Sesc procura unir as duas versões da história de Antígona, mas não consegue realmente cobrir a falta que faz a impecável unidade de ação de Sófocles, e toda a riqueza de pensamento nela contida e expressada também na parte final, abandonada, da tragédia grega. Proposto em nível militar, o tema fica menor, menos rico, menos profundo.
Trilha do Vulgue Tostoi ajuda no tom e na emoção da obra
A trilha sonora original, do Vulgue Tostoi (Marcello H. e Jr Tostoi) é forte e via de regra positiva para a criação do tom e da emoção da obra, porém nem mesmo assim dá para substituir os diálogos com outros personagens, cortados, que permitem melhor compreensão da trajetória do conflito básico.
A encenação de "RockAntygona" é despojada e bonita, com austera cenografia de Aurora dos Campos e figurinos corretos, mas não particularmente inspirados, de Tatiana Brescia, e boa iluminação de Tomás Ribas. A direção de Guilherme Leme opta por uma rigidez de comportamento nos personagens com clara intenção de criar o clima autoritário; a par da tensão dos personagens, as marcas buscam desenho um tanto geométrico, com o mesmo objetivo. Por outro lado, o texto é devidamente valorizado, dito com clareza e ênfase, mesmo que pecando pela pouca variedade.
As atuações estão condicionadas à concepção diretorial, sendo que o Creonte de Luis Melo é o que fica mais preso e sacrificado. Armando Babaioff (Hemon) executa a preocupação com o comportamento militar, mas mesmo assim consegue ter ao menos alguns momentos um pouco mais sensíveis, em sua defesa de Antígona. Larissa Bracher deveria ter um pouco mais de liberdade emocional, mesmo que sua defesa do irmão tenha base nas obrigações religiosas, e não apenas na afeição de irmã, mas, dentro do conceito da direção, se apresenta com uma figura digna e de bastante força.
"RockAntygona", mesmo com tais ressalvas, é um espetáculo interessante e bem realizado.
Macksen Luiz, Jornal do Brasil
RIO DE JANEIRO - Não se trata de adaptação reducionista da tragédia de Sófocles, mas de intervenção sonora e visual que torna o desafio de Antígona diante do poder discricionário, uma construção cênica de musicalidade atritante. O rock que se junta ao nome da filha de Édipo não é apenas um apelo de título, mas incorporação do desejo de contemporaneidade que ecoa por sonoridades para além do teatro. A força milenar do texto se mantém inalterada na condensação do trágico no camerístico, no enxugamento da ação no que se propõe como reflexos do exercício de poder.
É à volta dele que giram os atos de Creonte e de onde emana a desobediência e o determinismo de Antígona. Nesta contracena, que expõe as razões de estado, ou da baixa política, encobrindo o mando como valor que se justifica por sua própria manutenção, é a atitude transgressora das leis injustas que inicia o esfacelamento da autoridade personalista. Deste conflito, opondo Antígona, decidida a cumprir os preceitos de enterrar o corpo do irmão, a Creonte, que decreta que se proíba a realização do ritual, a versão de conserva a integralidade trágica, ainda que procure outras ressonâncias.
Com rigor e depuramento
A concepção do diretor Guilherme Leme se reveste de visualidade originada de instalações plásticas. A música preenche este espaço como complemento ambiental, ruído que capta dissonâncias e projeta o barulho das palavras. A presença de um DJ, que controla o som e também é narrador, atualiza o coro. A interpretação do elenco se integra a esse quadro de plasticidade impositiva como figuras hieráticas, traços firmes de mural reflexivo. O rigor é o elemento que ressalta na encenação de Guilherme Leme, transmitindo depurament o na arquitetura cênica de filigranado detalhamento. Apesar da abordagem formal ser predominante, o diretor não permite que se transforma em mero exibicionismo do bem executado ou em frieza ascética. O espetáculo instiga a reflexão e aquece a emoção através dos recursos plásticos e musicais, num geometrismo de meios, não de fim.
O cenário de Aurora dos Campos imprime horizontalidade à cena, estabelecendo profundidades, planos e transparências dramáticas de requintado impacto. A iluminação de Tomás Ribas valoriza a cenografia com luminosidade vigorosa de poética beleza. O figurino de Tatiana Brescia talvez pudesse ser menos conotado para os atores, especialmente para Creonte, mas o despojamento da túnica vermelha de Antígona contrasta bem com as cores escuras da ambientação. A trilha sonora original de Marcello H. e Jr. Tostoi pulsa ao ritmo dramático da batida heavy, interferência precisa na sua contundência. Marcelo H., que manipula a mesa de som e informa sobre o desenvolvimento das cenas, tira partido da projeção da voz e da trilha como mais um ator no palco.
Armando Babaioff, mesmo com a discutível apresentação coreográfica de Hémon, demonstra segurança e sutileza para expor as mudanças por que passa o filho frente a inflexibilidade do pai. Larissa Bracher tem, como Antígona, interpretação madura que dosa a obstinação moral com consciência de saber o que está reservado à personagem. A atriz, de maneira despojada e seca, confere dignidade à sua atuação. Luis Melo, um Creonte que em sua cena inicial adquire involuntário (mas pertinente) perfil de alguns dos nossos políticos, confirma a sua autoridade e densidade como intérprete, prejudicado em parte pela condensação da tragédia que não permite que a passagem da tirania ao declínio só seja possível para o ator vivê-lo como um tempo de registro momentâneo.