sábado, 6 de junho de 2009

. O estrangeiro - Danielle Avila

Uma verdade ainda negativa

(foto de ensaio)



O estrangeiro, peça em cartaz no Mezanino do Espaço SESC, é uma adaptação de Morten Kirksov para o romance homônimo de Albert Camus, com tradução de Liane Lazoski. Em cena, Guilherme Leme, que assina a direção junto com Vera Holtz, conta a história de seu personagem, Mersault, na primeira pessoa. Mersault é, a princípio, um homem comum. Aos poucos, percebemos que algumas fronteiras entre o comum e o incomum se romperam e que o limite entre o espaço do indivíduo e o espaço da sociedade está sendo apresentado como algo bastante complexo.


Nos momentos iniciais da peça, antes que o ator comece a contar a sua história, o espaço cênico se mostra como um espaço de tensão. O cenário de Aurora dos Campos e a luz de Maneco Quinderé formam uma câmara de pressão, condensam uma atmosfera - mas o agente dessa pressão, dessa condensação, não é facilmente identificável. Com elementos mínimos, o cenário constrói a sua presença e se coloca como interlocutor para o discurso de Mersault. É como se a visualidade do espetáculo expressasse a força do que está fora do universo particular do personagem.


A cena reflete a clareza do pensamento de Mersault. Assim como a escrita do autor, a encenação é refinada e sedutora. A beleza que provoca uma aproximação contrasta com o conteúdo da fala do personagem, que pode provocar aversão. A atuação de Guilherme Leme dá a ver a trajetória do personagem com a mesma premissa de contrastes: ele articula suavidade e rudeza, num jogo de sobreposição das duas forças.


Parece que a encenação apenas procurou criar uma ambientação que focasse na subjetividade do personagem, na reflexão que se pode ter a partir das suas afirmações, de forma que a conquista mais interessante da montagem parece ser a reverberação das idéias em jogo no texto. Isso acontece na medida em que a encenação se coloca como agente daquele discurso, sem parcialidades, fazendo um convite ao ajuizamento. A peça faz pensar sobre Mersault.


Então, me vem ao pensamento que talvez Mersault seja um parente - um pouco distante, mas talvez parente - do Bartleby de Herman Melville. Em seu ensaio sobre Bartleby, Gilles Deleuze aponta que a novela de Melville forma uma linhagem subterrânea com outras de Kleist, Dostoievski, Kafka e Beckett. Arrisco sugerir que o texto de Camus também faça parte desse parentesco obscuro.  O "Tanto faz" que Mersault repete se aproxima do "I am not particular" do Bartleby. Há algo que Deleuze diz deste último que talvez sirva a Mersault: "É liso demais para que nele se possa pendurar uma particularidade qualquer." E ainda:"Petrificados por natureza e que preferem... absolutamente nenhuma vontade, um nada de vontade e uma vontade de nada (...). Só conseguem sobreviver tornando-se pedra, negando a vontade, e se santificam nessa suspensão." (DELEUZE, 1997:92)

Em O estrangeiro, vemos a jornada de Mersault nesse processo de santificação às avessas: ele descobre a sua verdade, "uma verdade ainda negativa", nas palavras de Camus, a sua verdade feita de "não", de uma recusa que não é indiferente, mas comprometida e internamente coerente. A recusa de Bartleby (sua verdade também negativa) vai ao cúmulo da passividade, enquanto a de Mersault se resume a um ato extremo e sua conseqüente condenação. Ambos, cada um a seu modo, subvertem a lógica do entorno com a recusa a compartilhar seus pressupostos. E assim complexificam o pensamento sobre a vida.


                                                      ***


Por fim, talvez caiba aqui um comentário sobre o fato de que o espetáculo foi dirigido por Vera Holtz, que nunca tinha trabalhado como diretora. Há bem pouco tempo, esteve em cartaz no Rio uma peça que também foi dirigida por uma atriz: Apropriação, primeira direção de Bel Garcia. A experiência artisticamente bem-sucedida destas peças parece sugerir que uma ocasional troca de funções pode operar deslocamentos nos pressupostos estéticos dos artistas que se propõem a tais mudanças, e que, talvez, sair do seu lugar seguro de expressão artística possa cavar novos canais para refinar a voz pessoal de cada um.


Referências bibliográficas:
DELEUZE, Gilles.
Crítica e clínica; tradução de Peter Pál Pelbart. - São Paulo: Ed. 34, 1997. (Coleção TRANS)
MELVILLE, Herman.
Bartleby, o escrivão - Uma história de Wall Street; tradução de Irene Hirsch. São Paulo: Cosac & Naify, 2205.


(crítica publicada na revista eletrônica questão de crítica publicada em 24 de fevereiro de 2009)

www.questaodecritica.com.br

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